segunda-feira, 19 de março de 2018

Botina e plantinha





p/ Jô.

Sempre há algo que antecede qualquer ponto de partida de uma história a ser contada. Esta história, por exemplo, poderia começar muito antes. Mas, na condição de narradora, escolho começá-la numa pastagem muito verde, onde novilhos carnudos alimentam-se de brotos tenros de grama. Fazem parte de um grupo de animais que o fazendeiro proprietário de tudo por ali chama de gado para corte

Não demora para que alguns caminhões estacionem junto ao curral, onde os boizinhos se apinham, pressionados pelo pouco espaço. Dali, são engaiolados nas carrocerias, e seguem por estradas, mal acomodados, amedrontados pelo que os espera, embora não saibam exatamente o que seja.

Mortos no frigorífico, seus corpos transformados em produtos, mercadorias, ganham destinos diversos. De um lado, a carne tenra é destinada aos processamentos para produtos de alimentação. De outro lado, sua pele é encaminhada para beneficiamento. O couro devidamente tratado é destinado à indústria de calçados, chapéus, bolsas, roupas, dentre tantos outros objetos e mercadorias.

Um dos novilhos carnudos da pastagem verde teve seu couro retirado, tratado, e encaminhado para a indústria de calçados, mais especificamente de botinas, em sua maioria usadas por pessoas que trabalham no campo, na agricultura ou criação de animais, ou que transitam entre o campo e a cidade. Pois bem, o couro daquele novilho foi transformado numa botina de número 39, com solado de borracha, e elástico nas laterais, para facilitar no processo de calçar. Cor preta. Confeccionada por máquinas, mãos operárias as colocaram numa caixa de papelão na qual se podiam ler suas especificações. Seguiu, com muitas outas caixas, para ser acomodada em prateleiras de uma loja especializada em calçados, de onde foi comprada por um fazendeiro, desses que moram na cidade e trabalham no campo, e vão e vêm em camionetes atrevidas singrando estradas nem sempre bem conservadas. A botina era confortável, caiu-lhe bem nos pés. Começou a usar, e já quase não descalçava.

Depois de muitos meses de uso, a botina, que um dia foi pele de um novilho carnudo, já mostrava desgaste, o que até lhe dava um certo charme. A sola, meio entortada, as bordas do couro meio desbeiçadas. O elástico já frouxo. E, na ponta de um dos dedões, um furo mal aberto já começava a se esgarçar.

A um amigo artesão especializado em objetos de couro, encomendou um par de botas feitas à mão. Estava com as botinas, quando foi experimentar as botas novas. Estas afeiçoaram-se aos seus pés de tal modo que, uma vez calçadas, não mais quis tirá-las. Foi-se embora, deixando as botinas velhas para trás: tortas, feias, desgastadas.

A esposa do artesão as olhou, e vislumbrou nelas um par de vasos para umas mudas de orelha-de-elefante. A mudinha gostou do pé de botina furado no dedão. Aconchegou-se em suas curvas. Suas raízes espalharam-se no espaço com terra, antes ocupado pelo pé do agricultor. E as folhas foram estendendo-se, timidamente, para cima, experimentando a morada.

No último domingo à noite, fomos visitar o artesão e sua esposa. Voltei para casa alegre, nutrida de afetos, abraçada à botina com a muda da orelha-de-elefante. A botina, que um dia já foi novilho, repousa sobre a mesa da varanda. Agora é morada de uma plantinha que vai se pondo valente, à vista das demais plantas habitantes desse espaço.

Olho para elas, a botina e a plantinha, e penso em todas essas metamorfoses, esses caminhos, e todos os outros que sequer consigo imaginar...



Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante
Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo...
 (Raul Seixas)




domingo, 4 de março de 2018

Exercícios de alteridade: abelhas e pessoas


Para Rutinha, meu amor


Abelhinha, o que você está fazendo aqui?

Abelhinha, sai daí! Me deixe trabalhar!

Abelhinha, abelhinha, você está arriscando sua pele... tô avisando... tô com vontade de lhe dar uma panada...

Abelhinha! Eu vou encerrar você dentro do armário! Sai daí!

Ai, ai... ela é completamente surda!

Você voltou? Rapaz! Bichinho teimoso!

Oh, minha filha, eu tô armada! Se eu fosse você, tomava cuidado comigo! (com uma faca na mão, enquanto cortava legumes...)

Ah, então você vai sentar na panela quente? Senta! Problema seu. Eu não tenho nada com isso...

Acho que ela ouviu...



Conversas matinais da minha irmã, nas lidas na cozinha, enquanto umas três abelhas voejam, procurando alguma matéria prima para fazer mel...