segunda-feira, 10 de abril de 2017

Lolita e o cirurgião plástico. Ou: A escola psicossocial do Big Brother

Para todas as mulheres não-amélias deste "Brasil Varonil"...
e para J. Bamberg, com quem partilho esta indignação


Encontro muitas pessoas que, com ar de desdém, afirmam nem saber o que se passa no atual reality show da Globo, a décima sétima edição (já vai ganhando a maioridade civil...) do Big Brother Brasil.

De meu lado, tenho visto, para tentar entender um pouco do que se passa fora da tela da TV. É sabido que as mídias promovem mais educação, e de modo mais ágil, que todas as instituições escolares reunidas. Um programa como esses não funciona apenas como espelho que potencializa conflitos e comportamentos da vida social contemporânea. Funciona, também, como espaço potente de aprendizagens, de legitimação para comportamentos sociais.

Então, quando as notícias sobre violência à mulher assustam pelo grau de perversidade, pelas estatísticas crescentes, pelo sentimento de impotência que nos invade, é preciso perguntar por onde se passam esses descaminhos, quais seus mananciais. Sem dúvida, o programa em questão faz parte dessa cartografia... 

Sua edição neste 2017 trouxe ao écran dos aparelhos de televisão e demais aparatos midiáticos, diuturnamente, a relação de um casal formado por uma moça e um homem maduro, durante o jogo, cuja natureza ganhou feições assustadoras, amedrontadoras. A moça ocupa, no imaginário dentro e fora do confinamento, o lugar da ninfeta que mantém um vínculo ambíguo e conflituoso com o homem mais velho. Uma espécie de Lolita. A temática é antiga. As Lolitas ocupam o lugar de fetiche no imaginário sexual ocidental contemporâneo.

Em 1955, Vladimir Nabokov publicou o livro Lolita, que conta a história de um homem maduro, que se casa com uma mulher de mesma idade. Contudo, apaixona-se pela filha dela, uma adolescente. Essa história foi transformada em filme por Stanley Kubrick, em 1962. 

Na atual edição do Big Brother, o homem maduro é um médico, cirurgião plástico, que provavelmente tenha quase o dobro da idade da ninfeta. De saída, em escalas de poder, no imaginário social, pelo fato de ser homem e médico ele se encontra, no ponto de partida, numa posição diferenciada em relação aos demais. Na condição de cirurgião plástico, um componente a mais toma parte da composição: a vaidade. O médico é vaidoso, e opera sobre esse mesmo fetiche. 

A Lolita em questão é muito jovem, passional, explosiva. Ele é dominador, vaidoso, mais velho. Ambos são egoístas, e parecem movidos a tensão e conflito. Berram entre si. Os dedos em riste apontam o outro, tocando a pele do rosto. Corpo a corpo, o médico imobiliza a Lolita que grita para ele sair, sem ser atendida. Ele prende-lhe o pulso. Depois é ela quem volta, retoma a discussão. Provoca a ira... sob os olhares das outras mulheres também confinadas. Para estas, eventualmente, sobram ataques por parte do médico, ou malcriações por parte da Lolita. 

Todos esses detalhes não seriam tão relevantes, se não resultassem numa contínua relação de brigas, ameaças, embates físicos, que configuram assédio moral continuado, violência psicológica sendo veiculada em horário nobre pela TV, sem qualquer providência mais séria em relação à gravidade do quadro. O assédio moral estende-se dos embates entre o casal para as demais participantes, mulheres, que ocupam territórios periféricos à bomba relógio, vulneráveis a seus efeitos. Indefesas aos ataques do sultão em sua primazia... 

Contudo, a insanidade dos jogadores confinados pelo programa, ou o cinismo da emissora de televisão não são as principais fontes da indignação que motiva este texto. Uma e outra conduta são em alguma medida esperadas, lamentavelmente. A indignação vem, principalmente, da aprovação, por parte do público, do comportamento do casal, imbatíveis até à reta final do programa, candidatos favoritos à vitória. A Lolita tem a maioria da preferência do público em todas as enquetes, e o médico permanece em jogo, eliminando todos os adversários que tenham a má sorte de enfrentá-lo nos paredões. 

Parece se estabelecer uma relação de mão dupla: o programa ganha em audiência por veicular uma relação passional que transita impunemente pelo assédio e a violência morais. Ao mesmo tempo, com o programa, a emissora desenvolve uma pedagogia psicossocial segundo a qual tal comportamento não só é aprovado como elevado à condição de fetiche, porquanto premiado no certame em curso. 

Isso tudo acontece quando as discussões feministas de toda ordem ocupam lugar nas universidades, nas escolas, nas ruas, até mesmo nos telejornais da própria emissora de televisão! 

Então eu me pergunto: onde estão os grupos ativistas que não se posicionaram, que não gritaram, que não tomaram, até aqui, nenhuma providência legal sobre o que está ocorrendo? Se recusam ainda a ver o programa, por considerá-lo refratário à sua causa, ofensivo à sua capacidade intelectual? Mas o que ele veicula toma parte dos quantos vetores sociais que redundam na violência contra a mulher! Ignorá-lo é também passar ao largo das fontes da violência e ser, portanto, conivente com elas.

Hard times... bad times...






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