terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

O meu amigo Du


Tenho uma amiga muito especial, a quem endereço o afeto mais fundo. Um dos filhos dela tem um cão labrador, o Du. Como o filho fica a maior parte do tempo longe de casa, o Du convive mesmo é com minha amiga.

Se tem coisa que me deixa encafifada é essa história de as pessoas serem donas de animais. Proprietários de bens sobre patas, ou com asas, enfim. Do mesmo modo com as plantas...

O meu caso com o Du é antigo. De quando em vez, passo pela casa da minha amiga, só para dizer oi para ele (ah, e para ela também). Ele corresponde sacudindo a bunda, latindo com seu bocarrão, e trazendo coisas para brincar comigo: garrafas pet estraçalhadas, tapetes rasgados, cabos de vassoura mastigados...

Já fazia algum tempo eu não o via.

Ontem, foi aniversário da minha amiga. Liguei para ela. No meio da conversa, confessei: por vezes, sinto mais saudades do Du que de você... Mentira. Até porque sentir saudades dele é o mesmo que sentir dela: os dois são carne e unha. Eu queria mesmo era provocar. Aí ela me disse fala alguma coisa, que eu vou colocar o telefone no ouvido dele. Comecei a conversar com ele. Depois ouvi um barulho que não consegui decifrar, e ela caiu na gargalhada. Explicou-me: ao ouvir a minha voz, correu pegar a garrafa pet para brincar comigo. O barulho era a garrafa rangendo entre seus dentes.

Hoje não resisti. Fui até a casa deles, checar de perto essa história de ele querer brincar, ao ouvir minha voz pelo telefone. Du, meu querido! Saudades! Ele latiu, pulou para lá e para cá, entrou chamar minha amiga, e voltou ao portão, sacudindo a bunda mais que passista de carnaval. Depois trouxe um pequeno saco de plástico, para brincar. Esse saco não aguenta suas brincadeiras, Du! E se encostou em mim de frente, de ré, de lado. Encheu-me de pelos.

Quando saí, ficou me olhando pela grade do portão, olhos meio baixos, um tapete velho atravessado na boca.

Meu amigo querido. Amigos não são propriedades. A gente não possui: o afeto é que nos toma e estabelece laços.

Du, não vou me demorar a voltar. Preciso não demorar.




domingo, 12 de fevereiro de 2017

Fora do ninho


Na lateral do prédio, as caixas destinadas a aparelhos de ar condicionado que não foram usadas ganharam nova função: ninho para um casal de pombos criar seus filhotes.

Todos os dias, o trabalho da família é interminável: trazer alimento aos filhotes, abriga-los das intempéries.

Os filhotes crescem rapidamente, e logo já têm estatura próxima à dos pais. É quando começam a sacudir as asas, no ensaio do voo.

Num desses ensaios, o acidente doméstico: um dos filhotes caiu do ninho, entre os carros da garagem, no piso térreo do prédio. A mãe, entre aflita e ativa, impossibilitada de alçá-lo de volta ao ninho, trata de vigiá-lo, alimentá-lo, estimulá-lo a tentar voar. Ainda sem sucesso. Vigia a cria nesse novo e perigoso território de seu não-pertencimento.

O filhote, meio assustado, mas gradativamente ambientado, tem dormido em cantos ocultos ao movimento dos carros e das pessoas.

Não voltará ao ninho original. Ninguém voltará.
Não sabe o que lhe reserva o futuro. Ninguém sabe.





sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

Ciência e política: entreveros nem sempre recomendáveis...


Vez por outra, cada vez mais amiúde, sou provocada a retomar este tema, considerando, sobretudo, episódios lastimáveis em que o conhecimento científico se suja com a voracidade pelo poder experimentada por arrivistas políticos.

Volto, portanto, ao pequeno, mas nem por isso menos importante, livro escrito por Max Weber, intitulado Ciência e política: duas vocações. Nele, Weber argumenta em favor da manutenção de uma fronteira clara entre a produção de conhecimento e a atuação política. Ou seja: cientistas e professores não deveriam engajar-se em projetos políticos, defender bandeiras, fazendo, para isso, uso de seu lugar à frente de seus estudantes ou das ferramentas desenvolvidas no exercício de construção de saberes. O seu conhecimento deveria ser disponibilizado para que os grupos sociais pudessem, a partir dele, de modo esclarecido, fazer suas escolhas, atuar politicamente.

Está na base dessa orientação o princípio da isenção do conhecimento, a necessidade de distanciamento para que seja possível a construção autocrítica da interpretação do mundo. O que não é possível ao político, este defensor ardente de determinados pontos de vista, em detrimento dos demais.

Dito de outro modo, ao cientista caberia o papel social de ver e interpretar o que vê, produzindo conhecimento, tanto no âmbito das ciências da natureza quanto das sociais. Ao político, sim, caberia o papel de agir, tendo como referência o conhecimento produzido pelo cientista. Entre conhecer e agir, portanto, haveria um hiato a ser respeitado por um e pelo outro.

Este posicionamento funda-se nos princípios da objetividade e da neutralidade da ciência, condição que, desde há muito, reconhecemos impossível. Nada que se produza, pense, formule, está isento dos pontos de vista de seus autores. Ou seja: o pensamento científico, ao lado de todos os demais saberes e fazeres, estão encharcados das crenças do cientista, de suas inserções nas malhas sociais e culturais de pertencimento, de suas visões de mundo, ainda que não confessadas. Assim, a questão da ciência engajada tem sido tema de discussão desde há algum tempo, e se debate ainda entre dissenções as mais variadas.

Uma das estratégias mais prudentes talvez seja, novamente, apontada pelo próprio Weber, ainda no pequeno livro Ciência e política: duas vocações, quando sugere ser necessário, ao cientista e professor, o auto-esclarecimento a respeito de suas escolhas de cunho epistemológico nos processos de produzir ciência e ensiná-la. Em outras palavras, o exercício contínuo da autocrítica. A parceria incorruptível com a dúvida, em termos flusserianos.

No entanto, é preciso notar que há trânsitos em várias direções nessa via entre ciência e política, entre pensamento e ação. Se, de um lado, tem-se problematizado a natureza de uma ciência engajada, ou seja, da produção de conhecimento que abraça causas, de outro lado há que se observar e discutir os projetos políticos que buscam, nas instituições voltadas à produção de conhecimento, a chancela de suas bandeiras, a legitimação de seus discursos. Quantas vezes, com finalidades escusas, não declaradas, ou dissimuladas.

Evidentemente, parcerias entre a ciência e os projetos políticos sociais são desejáveis, apontando caminhos de superação de dificuldades, de resolução de problemas que afligem as populações. Contudo, a palavra-chave é parceria. Nela, as relações devem ser equalizadas de modo paritário, mantida a independência de uma em relação à outra. Dito assim, pode parecer de simples resolução. Mas, na verdade, é aí que começam as dificuldades. O intento de sua viabilização, sua verificação nas vias práticas, nos campos de negociação, nos agenciamentos quotidianos é que revelam os enormes desafios implícitos nessas relações.

O maior deles está na subjugação da ciência aos interesses políticos de segmentos específicos dos detentores do poder, bem como aos interesses econômicos. A produção de conhecimento e os sistemas de educação postos a serviço do mercado e das estruturas de poder é uma condição que deve ser rechaçada por educadores e pesquisadores com o mínimo de idoneidade no exercício de seus ofícios. 

Reconheço: a busca pelo rigor ético, pela idoneidade no exercício do ofício de professora e pesquisadora também é uma posição de engajamento. E, igualmente, não constitui uma escolha fácil. Supõe, muitas vezes, desafiar instâncias de onde se ouvem cantos de sereia com irresistível poder de sedução. Afinal, as vaidades instigam os egos. O chamado à visibilidade salta à frente. O desejo de reconhecimento pelas diversas comunidades de pertencimento impõe-se. Em nome dessas motivações, se produzem, rapidamente, discursos auto-justificatórios que mesclam questões sociais, defesa do bem-estar público, com ideias de progresso, desenvolvimento, etc.

Por isso mesmo, volto sempre a Weber e a Flusser, e aos princípios do auto-esclarecimento e da dúvida. Volto a eles, mesmo sem tomar ao pé da letra suas recomendações quanto à objetividade mais radical na produção de conhecimento. No entanto, assumo como um dos fundamentos no exercício do meu ofício, a necessidade de observar, com cautelosa distância, os projetos políticos, os debates partidários, as estratégias do poder e do mercado, em relação ao mundo da ciência. Cada vez mais.

Sobretudo quando observo um trânsito nem sempre auto-esclarecido, nem sempre submetido à dúvida, de pesquisadores de universidades públicas entre seus campos de atuação acadêmica e cargos políticos nos poderes executivo ou legislativo.

Sobretudo, em tempos quando os noticiários nacionais das redes abertas de televisão, em horário nobre, anunciam que um representante de um partido político, integrante do primeiro escalão de uma equipe de governo polêmico e contraditório, tem a chancela da academia para assumir um cargo na suprema corte do Poder Judiciário (cargo que exercerá, provavelmente, pelas próximas duas décadas, ou mais), porquanto tenha obtido o título máximo de doutor...




terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

Para que serve uma tese de doutorado?


Nos últimos anos, marcadamente desde o início dos anos 2000, mais precisamente a partir de 2002, aumentou em razão geométrica o número de doutores no Brasil. A política de expansão das universidades públicas e dos programas de pós-graduação possibilitou que um grande número de jovens, antes excluídos tanto do ensino superior e, sobretudo, dos cursos de pós-graduação, pudessem sonhar e realizar seus projetos de alcançarem os títulos de mestres e doutores.

Por sua vez, o Sistema Nacional de Pós-Graduação também passou por mudanças profundas, no sentido de desenvolver programas e plataformas cada vez mais complexas de controle e avaliação.

Nos bancos de teses e dissertações, multiplicam-se trabalhos aprovados em bancas e disponibilizados ao público, como parte da prestação de contas que se deva à sociedade: socializar o conhecimento produzido.

De tudo quanto seja produzido em nome das exigências de produtividade, ao fim e ao cabo, muito pouco é lido: artigos, capítulos de livros, teses, dissertações... Mas estas últimas, as teses e dissertações, não só são lidas como examinadas por bancas idôneas, que verificam a consistência do conhecimento produzido, que solicitam revisões antes da aprovação. Supõe-se que uma tese, quando aprovada, traga resultados legitimados, comprovados, de pesquisas desenvolvidas de acordo com os diferentes protocolos das diferentes áreas de conhecimento.

É claro: há sempre falhas no processo. Eventualmente, algum membro de banca não chegou a examinar o material com o devido cuidado. Muitas vezes fez uma leitura aligeirada, tendo decidido, previamente, aprovar o candidato a doutor. Noutras, prevalecem na avaliação questões de vaidade, mais que epistemológicas ou conceituais. Na academia, a fogueira das vaidades arde sem cessar...

O que dizer quando um doutorando, depois de ter defendido uma posição, em sua tese, obtendo aprovação em sua argumentação, em sua atividade pública assume posição antagônica à defendida? Quando a ação contraria o preceito, na atuação da mesma pessoa em questão?

Nesses casos, cabe a pergunta: para que serve uma tese de doutorado? Tão somente para alçar o candidato ao título? Eu, que recorrentemente me debruço sobre teses e dissertações de quantos candidatos, lendo com o respeito que cada um deles merece, mas também com o rigor que a produção de conhecimento requer, sinto-me desnorteada diante dessa questão.

Está posto: o Ministro da Justiça defendeu um ponto de vista em sua tese de doutorado. A banca o aprovou. O título de doutor legitima suas ações: é um conhecedor do assunto. Mas suas ações são conduzidas na contramão do que defendeu. Sobretudo quando o ponto da pauta é seu interesse próprio: tornar-se ministro no STF.

E eu aqui, me perguntando: para que serve uma tese de doutorado?


Tese: Jurisdição constitucional e tribunais constitucionais - garantia suprema da Constituição
Autor: Dr. Alexandre de Moraes 

Defendida em 2000, no Programa de Pós-Graduação em Direito - USP
Orientador: Dr. Dalmo de Abreu Dallari 






sábado, 4 de fevereiro de 2017

Apresentando, Senhora Cana do Brejo e Senhor Gengibre em pas de deux!



Na varanda do apartamento onde moro há uma pequena mata (observadas as devidas proporções...). Alojadas em vasos (nem sempre confortáveis para elas, eu sei), há trepadeiras, orquídeas, damas da noite, canas do brejo, orelhas de elefante, mirra, bromélias... Elas se expandem, se imiscuem, se misturam, ao modo da vida vegetal, a respeito da qual tão pouco sabemos. De minha parte, além de alimentá-las, e mantê-las em cativeiro, tento não impor disciplinamentos humanos ao seu modo de viver plantas.

Nada me convence de que, quando estou ausente, secretamente, elas façam festas e celebrações, dediquem-se a afazeres diversos, ou estabeleçam disputas entre si. Por isso, por vezes, algumas delas começam a definhar e desaparecem, enquanto outras apresentam-se cada vez mais vistosas e exuberantes. Enquanto umas tentam sobreviver no canto da varanda que lhes cabe, outras exibem conforto e opulência. Vá se entender seus processos de dinâmicas!

Ocorre, também, de aparecerem plantas que não foram plantadas ali... Aí os mistérios aprofundam-se... A cada dia, admito com mais convicção que tenho pouca autoridade sobre o que se passa na varanda, quando elas são o assunto...

Há algum tempo, plantei uma raiz de gengibre num vaso. Logo o broto compareceu, valente, e eu fiquei contente com a resposta. Ele foi crescendo, e abrindo suas folhas. Vários galhos emergiram do solo. Notei que havia dois tipos de folhas, razoavelmente distintas. Teriam nascido dois tipos de gengibre? Um tipo de folha era alongada, típica do gengibre em questão. A outra, mais larga, em torno a um pendão que vai traçando uma discreta espiral no ar. Bela folhagem.

Muitas fotografias depois, constatei tratar-se de um novo pé de cana do brejo, que eu não plantei ali. No canto oposto ao canto onde se encontra o gengibre, há uma família de cana do brejo. Ainda não se como, uma muda dessa família veio alojar-se neste vaso, formando um pas-de-deux: Senhora Cana do Brejo e Senhor Gengibre.

Voilà! Vida longa à dupla! E que sejam alegres as festas das plantas em minha varanda!